quarta-feira, 29 de novembro de 2017

A VOZ DAS PALAVRAS - O PECADO DA BELA ADORMECIDA

E quando julgamos que nada mais nos pode surpreender, eis que num milésimo de segundo algumas pessoas se encarregam de virar a vida do avesso e provar que nada pode ser tomado por garantido e que para tudo - mas mesmo tudo - o que pensamos ser objectivo e simples, cristalino como água pode tornar-se turvo e complexo aos olhos e aos pontos de vista de diferentes pessoas. Quão longe estamos da idade da pura inocência como é cantada pelos Pólo Norte ou do País das Maravilhas de Lewis Carroll com o qual Sócrates se identificava? Este mês, Sarah Hall, até aí uma anónima mãe inglesa resolveu pedir que o livro "A Bela Adormecida" fosse banido do currículo escolar por transmitir uma mensagem sexual inapropriada para crianças tão novas. Em causa a cena em que o príncipe encontra a jovem princesa num sono profundo e a beija, despertando-a do feitiço da bruxa má, e tudo porque é um mau exemplo para os jovens que um desconhecido se abeire de uma mulher e sem o consentimento dela lhe dê um beijo. WTF?! Quando foi que começámos a desconfiar de tudo e de todos, a ver o mal em todo o lado? É preciso separar as águas, reaprender a discernir o certo do errado antes que seja tarde demais. Deixem-se de falsos moralismos tão ao jeito das velhas beatas, desta caça às bruxas e de todos que nos querem impingir que o sexo é o maior dos pecados e para quem qualquer gesto ou comentário mais ou menos inocente - não indecente - é visto como assédio. Kevin Spacey, cuja carreira, tida como sólida, ameaça ruir como um frágil castelo de cartas, acusado e queimado na fogueira de uma volátil opinião pública como uma nova Joana D'Arc não é um tarado, não é um monstro do qual devemos manter as crianças afastadas. Errou? Que atire a primeira pedra quem nunca pecou. Porque deixaria de ver os seus filmes? É a mesma coisa de deixar de ouvir o George Michael ou o Freddie Mercury por gostarem de homens ou ignorar a marca de Carlos Cruz na televisão em Portugal. Afinal quem tem medo do Lobo Mau? Quantos filmes, obras de arte do cinema teriam ficado na gaveta se cada caso de assédio fosse o fim da carreira de um actor, realizador, produtor? Quantas jovens aspirantes a estrelas teriam permanecido no segredo dos deuses se não tivessem cedido a essas promessas com segundas intenções, mais que assédio tácitos contratos, que só agora, no auge da fama ou no final de fulgurantes carreiras se vêem expostos, como justiceiras de uma moralidade irrepreensível e intocável, sedentas pelo sangue de quem as lançou? Não me entendam mal que não é minha intenção defender quem usa ou se aproveita desses estratagemas, mas que quando aceites não são mais que um negócio, um acordo em que duas partes concordam uma com a outra e todos ficam a ganhar. É assim desde o princípio dos tempos, não vamos enfiar a cabeça na areia e fingir que não sabiamos de nada. Do cinema à música, da moda às grandes e médias empresas, mesmo naquelas mais pequenas, na mercearia da esquina, em todo o lugar onde exista algo a ganhar. O malandro do Johnny Deep bateu na mulher, Dustin Hoffman assediou por um piropo, que agora também é crime, os sacanas dos pais natais são todos pedófilos e por isso nunca mais vamos sentar os nossos filhos nos seus colos. Censure-se a Branca de Neve que porventura poderá até ter sido um dia branca e pura, antes de se tornar adúltera e partilhar o lar com sete estranhos e ainda andar aos beijos com o príncipe. Mas que mundo é este em que vivemos? Será que o Peter Pan é que tinha razão em não querer deixar de ser criança, se ser adulto é isto? Cara Sarah Hall, deixe-me dizer-lhe que a única incongruência no beijo à Bela Adormecida aos olhos dos nossos tempos não é o abuso de quem lhe deu um beijo sem pedir consentimento, mas da inocência de quem vendo uma linda mulher adormecida não lhe roubou mais do que apenas um beijo. Se calhar nem todos os homens são perversos, nem toda a carne é fraca e se lhes dermos uma oportunidade até há por aí alguns sapos que são príncipes.  A vida não é pura e sempre bonita e inocente como um conto de fadas nem tão feia como quer fazer crer. Homens e mulheres são imperfeitos desde o início dos tempos, gostam de amar sem tabus, sem pudor, gostam essencialmente do que não têm e por vezes não olham a meios para o conseguir; gostamos do risco, da adrenalina desde que Hefesto e Atena criaram Pandora. O mundo real, o mundo dos Homens é imperfeito e dificilmente deixará algum dia de o ser. Será que o desejamos? Somos todos pecadores, uns mais inocentes do que outros, mas não é por um piropo, por um beijo roubado que o mundo vai acabar. O verdadeiro pecado é passar pela vida sem lhe tomar o gosto, querer sobreviver-lhe no falso conforto de uma concha impenetrável, querer ser sempre justo e puro, desperdiçando o tempo a olhar para o lado e a criticar, apesar de todos os nossos telhados de vidro, vivendo tolhidos pelo medo, numa vida fingida com medo de nos magoarmos, de ousarmos ser mais que uma peça na engrenagem, com medo de errarmos, de sermos tão somente aquilo que queremos... felizes.
#oladobdavida2



segunda-feira, 20 de novembro de 2017

A VOZ DAS PALAVRAS - É HOJE QUE MATO UM!...

Sorte de quem não tem no seu dia a dia de lidar sistematicamente e quase ininterruptamente com o público. Não sabem como vos admiro e como sorrio com uma grande dose de forçada benevolência quando dizem que cada vez têm menos paciência para isto ou para aquilo. Venham acordar às cinco da manhã, venham fazer noites de fim de semana, sobreviver às horas de ponta numa selva de gente apressada, egoísta e mal educada para quem vocês são uma cambada de mal-agradecidos que deviam estar gratos por servi-los, dado que são eles que vos pagam o ordenado. E se em cada adepto existe um treinador de bancada, em cada cliente existe um patrão, cada um mais exigente do que o outro, com o sorriso ainda mais caro do que o bacalhau e o olhar típico "não me chateies ou vais ter de levar com o meu mau humor daqueles mais cinco minutos interrompidos a golpes de despertador". O cliente tem sempre razão e o dos transportes públicos tem ainda mais, especialmente desde que passou de passageiro a cliente e as empresas passaram a correr atrás deles como empregados de restaurantes em plena hora de almoço, tentando fidelizá-los. tratando-os como se fossem a última bolacha do pacote, mesmo que passem a vida a reclamar de tudo e de nada. Não podes dizer-lhes que viram mal o horário e que o c... do barco das 8h35 não está atrasado mas que sai, sim senhor, da outra margem do rio e não desta. O horário é que devia ser mais explícito. Não podemos dizer à sra doutora que perdeu o barco à conta dos tais cinco minutos, mas sim porque o nosso relógio deve estar adiantado, o motorista do autocarro vinha a pisar ovos ou porque o barco saiu à hora certa - sim, também aí somos culpados - quando o resto da semana andou a sair um minuto atrasado e não nos custava nada ter esperado mais um bocadinho assim, tipo danoninho mas esticado à proporção daquelas baguetes que costumamos ver nos filmes franceses, embrulhadas em papel de jornal. Devemos compreender ainda que a ausência de um eco ao nosso bom dia se deve mais à falta de tempo do que a uma falaciosa e aparente má-disposição, porque há gente que tem horários a cumprir e não pode desperdiçar esse tempo tão precioso com banalidades disfarçadas de boa educação. O cliente não é mal educado porque quer mas porque o seu clube perdeu no dia anterior, porque discutiu com a mulher, os filhos não o deixaram dormir ou simplesmente porque entrar às dez da manhã devia ser proibido. O cliente não é parvo porque te pergunta a que horas sai o barco quando apanha o mesmo todos os dias à mesma hora e à tua resposta insiste se não há nenhum antes do próximo. Ele só quer saber se estás no sítio certo, se sabes o horário e se tens os conhecimentos necessários para desempenhar a função para a qual ele te está a pagar. Eu sei que tenho mau feitio, que devia desvalorizar quando me chamam de filho da p... e vai pró c..., porque isso são desabafos de quem tem vidas stressantes e que no fundo, no fundo até são, não amigos mas condescendentes com a nossa posição subalterna em relação à sua categoria, mas que um dia ainda mato um, lá isso!... no mínimo faço.lhe um dói dói.
#oladobdavida2  #nívelzerodepaciencia #aculpaédomotorista